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Vinho Branco e Maçãs

Posted in Contos, Escritora on 6 de outubro de 2010 by marianalyrio

Barulho de areia triturada. Mesmo de dentro do carro, a praia cheirava a felicidade. Eram dois, que se confundiam em um naquela noite-não-tão-estrelada.

Não tinham canga, mas acharam uma toalha de mesa ordinária esquecida no porta-malas. Deitaram abraçados na areia quente, sorrindo, e ficaram um tempo como bobos, procurando pontos luminosos no céu.

Ela tinha 17, estudava em escola particular e morava na área nobre da cidade. Tinha acabado de chegar, irritada, do cursinho que fazia pra entrar na universidade. Se sentia artista, e passava as noites cantando pela cidade, enquanto ele a acompanhava no violão. E passavam os dias escrevendo, e discutindo, e tornando aquele lugar sem graça num universo mais emocionante. Naquela noite, planejavam o futuro, a vida para além de suas poucas idades.

Ela seria uma intelectual famosa em algum outro lugar do mundo. Algum lugar mais arejado e menos conservador e imbecil do que essa cidade de merda. Não importava onde, só queria ir, viver viajando. Sua escola seria o mundo, e sua casa, a estrada. E pra isso ela queria um companheiro. Ele iria com ela pra qualquer canto, como um paladino que acompanha sua intocável rainha. Ela queria o mundo, e ele só queria ela.

Divagaram sobre destinos, sobre morar cada ano em uma cidade, em todos os países do mundo. E contruir casas de três quartos, um pra eles e um pro casal de filhos que teriam. Escolheram seus nomes, pensaram na mobília e na cor da paredes. Ele compôs uma música, ela ganhou um anel. E só foram pra casa quando a madrugada ficou clara, largando no canto da calçada a garrafa vazia de vinho branco barato.

No ano seguinte ela foi estudar pra ser pós-doutora. Se mudou sozinha pra maior cidade do país, mas se encontrou nas luzes pulsantes da cidade. Se encontrou e se perdeu. Virou dona do próprio caminho, dona dos próprios desejos. E se esqueceu, e nunca mais voltou.

Terminou a fauldade, mas a bolsa pro mestrado não pagava bem. Nem a bolsa, nem os empregos que a trancariam em escritórios pelo dia inteiro. Virou puta. E se tornou escrava dessa cidade, agora abafada,  que lhe fornecia uma clientela de homens ricos e sem culhões.

Ele começou a beber pra esquecê-la. E bêbado só lembrava dela, e escrevia músicas pra ela. Entrou pra uma banda de rock pra se distrair nos fins de semana, e sem querer, gravou cds e fez shows em grandes festivais. Ganhou dinheiro, e hoje viaja o mundo comendo uma mulher em cada lugar que naquela noite ele desejou construir um castelo.